terça-feira, 18 de setembro de 2012

MARIA LÚCIA MEDEIROS - "A FRONTE PÁLIDA"

ilustração de João Caetano. Roubada do livro A maior flor do mundo
                                               
         
          Nasceste em noite de loucura, nascituro sim, e os primeiros sinais foram precedidos por arrepios fugazes de um gozo inocente, prazer restituído, aproximação maravilhosa, encontro aquecido a cada segundo em que tua imagem mergulhava em nitidez.

          Ver teu ombro primeiro, depois a nuca e ver ainda inflamar-se o desejo de trazer-te inteiro, arrancar-te do limbo das nebulosas, acariciar com o meu temor a fronte pálida. Tomar-te nos braços e iniciar o rito banindo primeiro a malícia, os arrependimentos, a mentira.

          Escolher as palavras, as sagradas sim, iniciar o gestual do encantamento, o eterno rir, proteger teu corpo buscando a perfeição. Não ter descuido, antes cuidar para que a insensatez não se enredasse nesse enredo.

         Sensível, desprezar o perverso, fugir dos malefícios. Umedecer teu chão, plantar-te, nomear-te, fazer-te verbo. Vigília iniciada, vigília empreendida, localizar casa e casal, demarcar território e edificar o tempo da memória.

         Houve que um dia nem pela terceira vez o cantar do galo foi ouvido. Um malsinado gesto interrompeu origem e saga e, para punir o sono da vigília, a dor foi imposta sem misericórdia.

 
                                                                 do Quarto de hora. p.47.
 

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